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Entre jardins e música: fios que conectam histórias (ambientais)


Esse livro é uma preciosidade. Ainda que seja datado e nos conte especificamente sobre a história da Inglaterra, trata de assuntos atualmente em grande evidência.


Muito antes de Donna Haraway mencionar as espécies companheiras, o historiador galês tratava do que chamou de “companheiros domésticos” na cultura europeia moderna (Séc. XVI-XVIII). Segundo Thomas,

“os animais domésticos eram considerados comparsas da comunidade humana, unidos por interesse mútuo a seus proprietários, que dependiam de sua fecundidade e bem estar”.

Embora bois, porcos, cavalos, ovelhas e aves domésticas não fossem criadas por razões sentimentais, as relações com os animais domésticos eram mais estreitas do que normalmente se sugere, de acordo com o autor. Afinal, eram relativamente mais numerosos do que hoje em dia (pelo menos em pequenas propriedades) e viviam muito mais próximos de seus criadores, que muitas vezes dormiam sob o mesmo teto. Em geral, separados por um muro baixo ou um corredor. Vivendo sob tal proximidade, esses animais muitas vezes eram considerados indivíduos e era comum que se falasse com eles (alguém mais se identifica?),


“pois seus donos, ao contrário dos intelectuais cartesianos, nunca os consideravam incapazes de entender” .

De forma geral, o livro trata do processo de sensibilização das sociedades ocidentais naquele período, em especial a Inglaterra, para temas relacionados às inter-relações com o que chamamos de natureza. Em diferentes níveis, seja no âmbito dos então emergentes estudos da história natural ou na construção de novos afetos em direção às plantas, aos animais, ou até às montanhas.


Na mais recente leitura que fiz do livro, me chamou a atenção o tema dos jardins. Segundo Thomas,

“por volta do século XVIII, o cultivo de árvores e o paisagismo tornaram-se passatempos característicos dos abastados, ao passo que uma paixão pelo cultivo de flores se difundia pela população em geral. Assim como os animais eram vistos por muitos com crescente simpatia, também árvores e flores conquistavam nova importância emocional”.

Vinculado a esse processo, no século XVIII, houve a emergência da profissão de jardineiros e paisagistas, que ofereciam conselhos à monarquia, aos aristocratas e à pequena nobreza, exigindo altos salários. Como eu já disse em outro post por aqui, o estudo da história das interações dos humanos e humanas com as plantas podem nos dizer muito sobre estruturas de poder.

Nesse contexto de valorização dos jardins, podemos citar o caso de Lancelot Brown (1716-1783), mais conhecido como Capability Brown, tido como um dos principais personagens da jardinagem paisagística inglesa. Estima-se que Brown foi responsável pela elaboração de cerca de cento e setenta parques, deixando um legado importante como arquiteto paisagista no século XVIII.



Lancelot ('Capability') Brown por Nathaniel Dance, (mais tarde Sir Nathaniel Dance-Holland), Domínio público, via Wikimedia Commons

Ele ficou conhecido como 'Capability' (em português, capacidade) Brown porque dizia-se que se referia aos jardins como locais de grande "capacidade" ao discutir o potencial da paisagem com seus clientes. O Castelo de Highclere, cenário da série de TV Downton Abbey, que talvez alguns aqui conheçam, é um dos muitos parques projetados por Brown no século XVIII. Em 2016, a BBC lançou um documentário sobre sua vida e seus jardins. Assista ao documentário aqui e conheça alguns dos seus jardins aqui.

Dando um salto temporal na história, curiosamente, na década de 1970, uma banda de rock progressivo se apropriou do nome do tal jardineiro e fundou a banda Capability Brown. Algumas de suas letras foram bastante influenciadas pela temática ambiental que tomava corpo com a expansão do movimento ambientalista naquela época.


Uma destas músicas é “No Range” (Sem Alcance), em que a banda trata do aumento da urbanização e sinaliza a oposição entre campo e cidade como uma ameaça da última ao “mundo natural”, ligando-se ao que Raymond Williams avaliou como uma complexa relação dos britânicos com diferentes vertentes que persistiram nos sentimentos da população em relação ao seu passado rural. Em “Garden” (Jardim), o jardim é mencionado como um local de tranquilidade, iluminação e superação.


Historicamente, cristalizaram-se atitudes emocionais poderosas sobre os conceitos de campo e cidade que persistiram ao longo do tempo:

“O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtudes simples. À cidade, associou-se a ideia de centro de realizações – de saber, comunicações, luz. Também constelaram-se poderosas associações negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo como lugar de atraso, ignorância e limitação”.

Representações que irão reverberar no mundo ocidental, em vários países, como podemos ver em textos redigidos no século XVIII ou nos dias atuais no Brasil. Mas, estudos recentes sobre a temática campo-cidade vêm questionando essa construção dicotômica como eixo de análise dos processos históricos, pois estes teriam engendrado “profundas transformações em ambos, estreitando e intensificando as relações estabelecidas entre eles”.

A banda Capability Brown, composta por seis integrantes multi-instrumentistas, lançou seu primeiro álbum, “From Scratch” (o que eu mais gosto), em 1972, e trouxe em sua capa um casebre no campo com menção a um jardim e ferramentas de jardinagem, em alusão a uma perspectiva idílica e tranquila do campo. 


Em 1973, a banda lançou o álbum "Voice" e não gravou novamente depois disso. Em 1974, Tony, Roger e Graham foram recrutados pelo amigo e membro da banda "Christie" (conhecida pela música Yellow River), Roger Flavell, para se juntar ao seu grupo em uma turnê pela América do Sul. Assim, Capability Brown deixou de existir. Mas como muitos eventos da história, sobreviveu por meio de suas composições para contar sobre o tempo em que viveram, ligando-se, com duzentos anos de diferença, aos vestígios de outras obras artísticas, arquitetadas por Lancelot "Capability" Brown e as plantas que com ele criaram novos ecossistemas. Estes sobrevivem até os dias atuais nos jardins do Reino Unido.

 

Referências Bibliográficas:


ALCIDES, Sérgio. Entre penhascos: Cláudio Manoel da Costa e a paisagem das Minas (1753-1773). São Paulo: Editora Hucitec, 2003.


ARAÚJO, F. A. V. de; SOARES, B. R. Relação cidade-campo: desafios e perspectivas . Revista Campo-Território, Uberlândia, v. 4, n. 7 Fev., p. 201–229, 2009. DOI: 10.14393/RCT4711894. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/campoterritorio/article/view/11894. Acesso em: 16 jul. 2024.


HARAWAY, Donna. O manifesto das espécies companheiras: cachorros, pessoas e alteridade significativa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.


THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.


 

Sites:



 

Como citar este texto: CAPANEMA, Carolina M. Entre jardins e música: fios que conectam histórias (ambientais) Acesso em: https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/entre-jardins-e-musica-fios-que-conectam-historias-ambientais. [Data de acesso].







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