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Sobre natureza e afeto

Atualizado: 6 de out. de 2020




Tenho várias memórias pessoais que vinculam meus afetos à natureza. Vou contar aqui uma história que alguns já conhecem.


Quando era criança li “A montanha encantada”, um livro escrito por Maria José Dupré (1898-1984), renomada escritora brasileira, que deve ter embalado a infância de muitos com sua coleção de livros infantis intitulada “Cachorrinho Samba”. Muitas de suas obras foram adotados em escolas, como aquela em que eu estudava. O enredo se constrói em torno do encantamento de um grupo de crianças pelas montanhas que cercavam a fazenda onde passavam as férias, bem como pelos seus interesses em descobrir o que havia naquela montanha após terem observado, certa noite, uma luz irradiada do seu topo.


Esse livro fez a minha imaginação voar. Afinal, eu morava no sopé de uma montanha – a serra do Ouro Branco – e comecei a imaginar como seriam os seres incríveis e fantasiosos que habitavam os seus contrafortes. Morei na cidade dos oito aos quinze anos de idade, em uma casa que tinha a serra como moldura do meu quintal (foto acima) e nesse período nunca tive a oportunidade de ver o que havia em sua parte posterior.



sobre natureza e afeto
Serra do Ouro Branco. Clique na imagem para ampliá-la. Foto: Herbert Pardini, 2014.

Somente muitos anos depois, o amor veio me mostrar aquele “segredo”. A foto acima é um registro do dia em que conheci o que havia atrás daquela “montanha encantada”. Dia inesquecível e emocionante porque revivi aquele sentimento de criança e também porque aquela paisagem me foi apresentada por quem hoje divide a vida comigo e tão bem conhece aquelas paragens, apesar de nunca ter morado na cidade.


A ligação afetiva com alguns lugares é algo realmente incrível. Meu fascínio pela serra do Ouro Branco começou muito cedo, assim que eu e minha família nos mudamos para a cidade. Lembro-me bem que, ao andar de bicicleta pela minha rua, às vezes o portão da casa estava aberto, eu olhava através dele, avistava aquela paisagem deslumbrante (a lagoa, seguida pela mata e pela serra) e pensava: Não! Isso não pode ser real! Eu era criança e aquilo tudo me fascinava.


Aquele ambiente e natureza foram cenário, impulso e companheiros de inúmeros sonhos, inventividades, invencionices de uma criança e depois de uma adolescente. Ali conheci o amor e muitos dos amigos e amigas que me acompanham há algumas décadas e pelos/as quais tenho um carinho e uma ligação difícil de explicar. Estar com eles/elas e estar naquela cidade é como estar com a minha essência, com aquela menina cheia de sonhos, planos e esperanças.


Acredito que a forte presença e contato com a natureza em Ouro Branco moldaram até mesmo minhas escolhas profissionais, pois acabei me especializando em história ambiental. Realmente aquela cidade e as experiências que vivi ali estarão sempre na minha memória e são parte da minha vida.


Desejo que este espaço também seja um lugar de afeto(s), no qual possamos refletir sobre a natureza a partir dos sentimentos. Talvez o meio mais eficaz para se sensibilizar para uma causa. Eu não sou a primeira a fazer isso, inspiro-me em naturalistas/cientistas, como Humboldt (1769-1859) e Alberto José de Sampaio (1881-1946), e pensadoras/es como Bell Hooks e Ailton Krenak que acreditaram, ou ainda acreditam, no caminho da união entre razão e emoção, tanto na produção científica, nas práticas pedagógicas, como nas formas de agir no mundo. Estou cada vez mais convencida de que fazer ciência ou lecionar sem afeto não faz sentido.

Você tem alguma memória afetiva vinculada a alguma vivência ou percepção da natureza? Acredito que com ela podemos construir nossos afetos e, quem sabe, moldar afetos futuros e uma relação mais respeitosa com o ambiente do qual somos parte.


 

Dedico esse texto ao Herbert, o amor que me ajudou a ressignificar a "montanha encantada".



Referências utilizadas no texto:


DUPRÉ, Maria José. A montanha encantada. São Paulo: Ática, 2000.

HOOKS, Bell. Love as the practice of freedom. In: Outlaw Culture. Resisting Representations. Nova Iorque: Routledge, 2006, p. 243–250. [Há uma tradução que foi feita por Wanderson Flor do Nascimento para uso didático, “O amor como a prática da liberdade”, disponível em:

HUMBOLDT, Alexander von. Introducción. In: Cosmos: ensayo de una descripción física del mundo. Buenos Aires: Editorial Glem, 1944.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

KRENAK, Ailton. O amanhã não está à venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

SAMPAIO, Alberto José de. Biogeographia Dynamica: A Natureza e o Homem no Brasil – noções gerais e estudo especial da “Proteção à Natureza” no Brasil. Coleção Brasiliana, vol. 53. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1935.



Algumas referências complementares sobre o tema:


CAPANEMA, Carolina M. “Em cada palavra uma semente fértil de nova árvore”: Alberto Sampaio e a divulgação de práticas de proteção à natureza no Brasil. Anais [do] 10º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo: Sociedade Brasileira de História da Ciência, 2005 [CD-ROM]. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/340678133_Em_cada_palavra_uma_semente_fertil_de_nova_arvore_Alberto_Sampaio_e_a_divulgacao_de_praticas_de_protecao_a_natureza_no_Brasil. Acesso em 12/06/2020.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

NARANJO, Claudio. A educação atual produz zumbis. Entrevista a Claudio Naranjo por Flávia Yuri Oshima. Revista Época, 31/05/2015. Disponível em: https://epoca.globo.com/ideias/noticia/2015/05/claudio-naranjo-educacao-atual-produz-zumbis.html . Acesso em 11/06/2020.

WULF, Andrea. A invenção da natureza: a vida e as descobertas de Alexander von Humboldt [tradução Renato Marques] 1 .ed. São Paulo: Planeta, 2016.

 

Como citar este texto:


CAPANEMA, Carolina M. Sobre natureza e afeto. Em Tudo Vejo Natureza, Viçosa. 2020. Disponível em: <https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/sobre-natureza-e-afeto>. Acesso em: [Data de acesso].


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