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Pelo fim da cegueira ambiental na História

Atualizado: 6 de out. de 2020


Gonçalves, sul de Minas Gerais, janeiro de 2018.
Gonçalves, sul de Minas Gerais, janeiro de 2018.

Se eu perguntar a você o que enxerga nesta foto, provavelmente você dirá que vê uma mulher. Se me conhece, dirá que vê a mim, Carol. Embora eu seja apenas uma componente das diferentes formas de vida que compõem a imagem, a probabilidade de que você mencione as plantas (árvores, arbustos, gramíneas, etc.) que ali se apresentam é mínima.


Nas ciências biológicas este fenômeno tem sido explicado pelo conceito de “cegueira botânica”. O termo foi criado, em 1998, por dois biólogos e professores estadunidenses James H. Wandersee e Elisabeth E. Schussler, que o definiram da seguinte maneira: (a) a incapacidade de reconhecer a importância das plantas na biosfera e nos assuntos humanos; (b) a incapacidade de apreciar as características estéticas e biológicas únicas do reino vegetal; e (c) a classificação antropocêntrica que caracteriza as plantas como inferiores aos animais (humanos e não-humanos), e que levam à errônea conclusão de que elas são menos dignas das considerações humanas.


Esta dificuldade humana de estabelecer uma relação visual e afetiva imediata com as plantas teria causas biológicas e culturais. Biologicamente, nossa habilidade para percebê-las tem relação com a neurofisiologia. Estudos científicos apontam que somente 0,0000016% dos dados produzidos nos olhos são processados e, ainda assim, a prioridade é dada a objetos em movimento, a padrões específicos de cores, a elementos que já nos são conhecidos ou a seres ameaçadores. Mas os fatores culturais também têm importância nessa configuração, pois nossa educação formal e informal ajudam a delinear o que cada cultura entende como importante. Nesse sentido, autores e autoras que discutem o conceito de cegueira botânica têm dado destaque ao privilégio geralmente concedido no ensino de biologia aos animais, mas também ao grau de valor que cada cultura atribui às plantas, pois grupos sociais que trabalham diretamente com elas, como agricultores, tenderiam a ter baixa prevalência de cegueira vegetal.


A hipótese que apresento aqui é a de que o conceito de cegueira botânica também serve para instrumentalizar uma análise da produção do conhecimento histórico e o que estou chamando de “cegueira ambiental na história”, pois historiadores e historiadoras, de forma geral, se mostram “cegos” aos elementos biofísicos (aqui não me restrinjo ao reino vegetal) na constituição dos processos históricos. O que se concebe como natureza geralmente aparece apenas como cenário ou palco de acontecimentos nas análise historiográficas.

Creio que isso possa ser atribuído a fatores similares aos imputados à cegueira botânica, ou seja, tem relação com nossa cognição visual, mas também com o pensamento antropocêntrico hegemônico na cultura ocidental, que elabora uma separação intrínseca entre os seres humanos e as comunidades bióticas e abióticas, supondo que o homo sapiens as domina e dispõe destas comunidades de forma indiscriminada como “recursos” para o seu desenvolvimento. A cegueira ambiental acaba por neutralizar e até mesmo apagar a importância das interações entre humanos e não-humanos na constituição das dinâmicas históricas. A industrialização e a urbanização contribuíram ainda mais para nos afastarmos desta perceção de proximidade.

Muitas vezes esquece-se ou ignora-se que a própria sobrevivência humana depende, em grande parte, da nossa relação com o reino vegetal, que nos oferece a subsistência, além de regular e sustentar a vida na Terra por meio de suas relações ecológicas e seu metabolismo. A segmentação do conhecimento em disciplinas certamente também contribui para a configuração desse modelo de pensamento. Nesse sentido, destaco que como profissionais de ciências humanas não podemos deixar de considerar que essa interação entre plantas e pessoas é sempre mediada por relações de poder, configurando-se, assim, em assunto indispensável à compreensão das desigualdades que sustentam a vida em sociedade e, portanto, à história.

Nossa relação com os alimentos não industrializados, por exemplo, está diretamente relacionada com a disponibilidade de terras, com a distribuição e posse das mesmas, com o acesso ao capital e ao uso de tecnologias na produção, com as possibilidades de acesso à irrigação e com as políticas públicas que regulamentam os acessos a tudo isso. Obviamente, com as desigualdades sociais entre negros, brancos, indígenas, ricos, pobres, homens e mulheres na constituição dessas relações.


Este texto é, portanto, um manifesto pelo fim da cegueira ambiental na história e nos processos que a constituem. O ambiente ao qual pertencemos não está disponível para todos de forma igualitária e o acesso ao que se chama de “recursos naturais” geralmente se dá de forma desigual para os diferentes grupos sociais que compõem a sociedade, como foi destacado acima. Ou seja, as relações de poder se materializam no uso que se fazem da natureza. Além disso, a manutenção da vida na Terra está intrinsecamente vinculada aos processos ecológicos que envolvem o reino vegetal e isso já é uma justificativa para considerarmos as relações que estabelecemos com as plantas.

 

* Agradeço à Escola de Botânica por me apresentar o precioso conceito de cegueira botânica.

Referências:


MARI, Hugo; SILVEIRA, José Carlos Cavalheiro da. Sobre a cognição visual. SCRIPTA, Belo Horizonte, v.14, n.26, p.3-26,1ºsem. 2010. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4347/11275. Acesso em: 28/08/2020.


MAZOYER, Marcel & ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo: do neolítico à crise contemporânea. São Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: NEAD, 2010.

NEVES, Amanda; BUNDCHEN, Márcia; LISBOA, Cassiano Pamplona. Cegueira botânica: é possível superá-la a partir da Educação?. Ciênc. Educ. (Bauru), Bauru, v. 25, n. 3, p. 745-762, Set. 2019 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-73132019000300745&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 27/08/2020.

SALATINO, Antonio; BUCKERIDGE, Marcos. Mas de que te serve sabre botânica?. Estud. Av., São Paulo, v. 30, n. 87, pág.177-196, agosto de 2016.Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142016000200177&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 27 de agosto de 2020.

WANDERSEE, J. H.; SCHUSSLER, E. E. Toward a theory of plant blindness. Plant

Science Bulletin, v.47, n.1, p.2-9, 2001. Disponível em: https://www.botany.org/bsa/psb/2001/psb47-1.html#Toward%20a%20Theory%20of%20Plant. Acesso em: 27/08/2020.

 

Como citar este texto:


CAPANEMA, Carolina M. Pelo fim da cegueira ambiental na História, Viçosa. 2020. Disponível em: <https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/pelo-fim-da-cegueira-ambiental-na-historia>. Acesso em: [Data de acesso].


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