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O mito da natureza intocada e suas implicações históricas

Atualizado: 10 de nov. de 2020




A ideia de que existem alguns lugares na Terra que possuem ou possuíram uma natureza intocada, virgem, é uma máxima que permeia o imaginário ocidental.


Esse “mito”, como definido por Antonio Carlos Diegues em seu clássico livro sobre o tema, estaria fundamentado na representação de que existiriam áreas intocadas, em estado “puro”, até mesmo anteriores ao aparecimento da humanidade.


A ideia moldou a criação das primeiras áreas de conservação da natureza no século XIX, onde espaços extensos deveriam ser mantidos “intactos” e sem uso, mas podemos utilizá-la para analisar outros períodos históricos, como o colonial, pois essa representação, que está associada à ideia de paraíso perdido, clássica na cultura ocidental, como indicou Sérgio Buarque de Holanda, fomenta a concepção de que, na época do contato dos europeus com os povos originários da América, esse espaço era “vazio”, quase inexplorado e, portanto, passível de dominação. Ou seja, o mito da natureza intocada ou do paraíso perdido ajudou a fundamentar e legitimar a dominação europeia.


Além disso, essa concepção resvala em um problema grave de interpretação histórica: a exclusão das populações indígenas como agentes de seu tempo, ou seja, pessoas que agiram, modificaram e criaram seus ambientes e culturas próprias no período pré-colonial, bem como ainda o fazem no presente.


Há exemplos contundentes que mostram como as sociedades e o ambiente nas Américas estiveram imbricados em seus processos de coevolução nos últimos 12.000 anos e de que a natureza encontrada pelos europeus não era “intocada”. Refiro-me às chamadas “terras pretas de índio” da Amazônia, também conhecidas como “terra preta arqueológica” ou simplesmente “terra preta”.

Estudos arqueológicos indicam que há manchas de solo de cor preta em regiões da Amazônia que foram formadas pela decomposição de material orgânico e fragmentos de cerâmica utilizados pelos indígenas no passado. Essa interação formou um tipo de solo que apresenta grande fertilidade em lugares que foram intensamente ocupados por séculos e muitas vezes estão hoje recobertos por florestas.

Isso demonstra que a natureza foi transformada na interação com a presença humana durante milênios e que não considerar esta perspectiva implica a exclusão da atuação dos povos que viviam na América antes da colonização como agentes históricos, que ajudaram a construir, no mais amplo sentido da palavra, o território em que vivemos hoje.

Por isso a importância desse debate para a história. As percepções e teorias sobre a natureza afetam diretamente a forma como percebemos e agimos no mundo. Não é possível desconectá-las. Assim, defendo a importância da disciplina história incorporar os aspectos geralmente considerados “naturais” em suas investigações e, nesse sentido, talvez um caminho seja o entendimento e o uso dos conceitos de “ecologia histórica” e “paisagem”, pois partem do princípio de que os ambientes humanos e não-humanos se formaram conjuntamente ao longo do tempo e se influenciam mutuamente.


 

* Dedico este texto à Camila Jácome, minha amiga estudiosa das culturas indígenas e com quem tenho constantemente dialogado sobre o tema.



Referências:


BALÉÉ, William. Culturas de distúrbio e diversidade em substratos amazônicos. In: TEIXEIRA, Wenceslau Geraldes et. al. As terras pretas de índio da Amazônia: sua caracterização e uso deste conhecimento na criação de novas áreas. Manaus: Embrapa Amazônia Ocidental, 2009.

COSTA, Marcondes Lima da et. al. Paisagens amazônicas sob a ocupação do homem pré-histórico: uma visão geológica. In: TEIXEIRA, Wenceslau Geraldes et. al. As terras pretas de índio da Amazônia: sua caracterização e uso deste conhecimento na criação de novas áreas. Manaus: Embrapa Amazônia Ocidental, 2009.

DIEGUES, Antonio Carlos Sant’Ana. O mito moderno da natureza intocada. São Paulo: Hucitec: Nupaub-USP/CEC, 2008.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000.

Bibliografia complementar


CAMPOS, Milton César Costa et. al. Caracterização e classificação de terras pretas arqueológicas na Região do Médio Rio Madeira. Bragantia, Campinas, v. 70, n. 3, 2011.

JÁCOME, Camila Pereira. Sobre as fontes: teorias e métodos utilizados para as cerâmicas e paisagem. In: Dos Waiwai aos Pooco – Fragmentos de história e arqueologia das gentes dos rios Mapuera (Mawtohrî), Cachorro (Katxuru) e Trombetas (Kahu). Tese (Doutorado em Arqueologia). São Paulo, Museu de Arqueologia e Etnologia, Programa de Pós-Graduação em Arquelogia, Universidade de São Paulo, 2017.

PESSOA JÚNIOR, Erasmo Sérgio Ferreira et. al. Terra preta de índio na região amazônica. Scientia Amazonia, v. 1, n.1, 1-8, 2012.

 

Como citar este texto:


CAPANEMA, Carolina M. O mito da natureza intocada e suas implicações históricas. Em Tudo Vejo Natureza, Viçosa. 2020. Disponível em: <https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/o-mito-da-natureza-intocada-e-suas-implicacoes-historicas>. Acesso em: [Data de acesso].


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