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Vocação mineral ou autodestruição?

Atualizado: 18 de nov. de 2020


Figura 1: Barragem Casa de Pedra, zona urbana de Congonhas/MG. Fonte: Google Eath, jul.2020
Figura 1: Barragem Casa de Pedra, zona urbana de Congonhas/MG. Fonte: Google Eath, jul.2020.

É recorrente ouvirmos na mídia que Minas Gerais tem uma “vocação mineradora”, principalmente em propagandas veiculadas pelas grandes corporações que praticam esta atividade ou pelos principais interessados em seu desenvolvimento.


Trata-se de um discurso que atribui uma conotação positiva à certa tradição histórica de exploração mineral em Minas. Nestes discursos, o uso da palavra “vocação” assume um sentido político, vinculando-se a uma ideia de destino, de algo irrevogável, quando, na verdade, refere-se a um processo que foi construído historicamente. Afinal, nenhuma atividade ou processo histórico são permanentes, são frutos, sim, de interesses que se sobrepõem em cada época.


A mineração em Minas destruiu e vem destruindo parte do patrimônio que ela mesma ajudou a construir. Bento Rodrigues, sub-distrito de Mariana que foi exterminado com o rompimento da barragem da Samarco há cinco anos (figura 2), foi fundado pelos exploradores de ouro que se estabeleceram na região central do estado a partir do final do século XVII.


Figura 2: Bento Rodrigues após o rompimento, 2015. Fonte: Senado Federal, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons.
Figura 2: Bento Rodrigues após o rompimento, 2015. Fonte: Senado Federal, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons.

Congonhas é outra cidade mineira fundada pela exploração mineral no século XVIII e corre riscos sistemáticos de rompimento das 23 barragens de rejeitos que estão em seu território, classificadas entre alto e baixo risco. A imagem 1 é da barragem Casa de Pedra, pertencente a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN). A edificação é apontada como um dos maiores reservatórios de rejeitos de mineração localizados em área urbana no mundo e com classificação de alto risco de dano potencial associado.


O território de Miguel Burnier, distrito de Ouro Preto, no passado conhecido como São Julião, sofre diariamente com os impactos das atividades da empresa siredúrgica Gerdau S.A. em sua área urbana. Ali também se repete o padrão que chamo de "autodestruição", pois parte de seu patrimônio edificado remete à implantação no local da Usina Wigg, produtora de ferro, no século XIX. A imagem 3 mostra, ao centro/abaixo, o Santuário do Sagrado Coração de Jesus, construído na primeira metade do século XX e ainda utilizado pela população local, cercado pelas instalações industriais da Gerdau S.A..


Figura 3: Santuário do Sagrado Coração de Jesus, Miguel Burnier. Foto: Carolina Capanema, fev.2014.
Figura 3: Santuário do Sagrado Coração de Jesus, Miguel Burnier. Foto: Carolina Capanema, fev.2014.

Portanto, em que sentido a utilização do argumento da vocação histórica é válida para legitimar a manutenção da atividade mineral, se ela vem destruindo ou ameaçando os vestígios históricos desta tradição?

Vejamos, agora, como a alegação de uma propensão histórica à mineração em Minas vem sendo utilizada pelos interessados na manutenção das atividades minerais. Em abril de 2019, em vista das críticas feitas à mineração após o rompimento das barragens de rejeitos de minério de ferro em Mariana e Brumadinho, a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais (FIEMG) lançou um vídeo promocional em apoio àquela atividade. No vídeo disponibilizado na plataforma do Youtube, a entidade utiliza enfaticamente o argumento de uma vocação histórica do estado para o desenvolvimento de atividades minerárias: “a mineração está em nosso DNA. É nossa vocação e está no centro do nosso desenvolvimento há mais de 300 anos”, adverte o comercial (veja abaixo).




No mesmo mês de abril de 2019 foi realizado o Seminário Técnico Internacional sobre Barragens de Rejeitos e o Futuro da Mineração em Minas Gerais, por iniciativa do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), com o apoio de empresas do setor, do poder público e, novamente, da FIEMG. Em texto escrito para divulgar os resultados do evento, o presidente desta última instituição, apontou, em tom alarmante, que se a indústria da mineração não retomasse o ritmo normal de produção, que teria sido interrompido pelo que ocorreu nas duas cidades de Minas, o impacto na economia mineira seria catastrófico, “uma tragédia”, pois, segundo ele, esta teria na mineração a sua base.


Ora, mas não é isso que mostram os dados oficiais sobre o Produto Interno Bruto (PIB) de Minas Gerais. Segundo informações da Fundação João Pinheiro, para o ano de 2018, a participação da indústria no PIB de Minas era de apenas 25,8%, enquanto o setor de serviços contribuiu com 68,8%. Estes dados não diferem de anos anteriores, segundo série histórica disponível desde 2002. Portanto, em que sentido a mineração se configuraria como a “base” da economia mineira, como afirma o presidente da FIEMG e sugere o vídeo produzido pela instituição?

O incentivo à exploração de minérios em Minas Gerais é uma escolha política, não é algo que pode ser naturalizado. A mineração beneficia e atende a interesses de grandes corporações multinacionais, que atualmente têm poder de estado - na medida e que ocupam lugares privilegiados nos centros dos poderes decisórios* -, e também aos interesses das próprias instituições públicas e dos ocupantes de seus cargos que muitas vezes se beneficiam de recursos adivinhos da atividade, como no caso de financiamento de campanhas e pagamento de royalties.

Apesar de as negociações e processos de reparação dos desastres causados pela Samarco Mineração S.A. e Vale S.A. estarem longe de serem concluídos, a empresa Vale S.A., controladora também da Samarco, tem investido milhões de reais em propaganda para (re)construção de sua imagem. O argumento da vocação histórica para a mineração continua sendo central em alguns de seus vídeos institucionais, como se o desenvolvimento da atividade tratasse do cumprimento de um destino inexorável da humanidade em direção ao “progresso” (veja o vídeo abaixo).




Mas, então, eu lhes pergunto: estamos indo em direção ao progresso ou à autodestruição?


Ou seriam esses dois lados da mesma moeda?

 

Nota: * Refiro-me aqui ao protagonismo da atuação das empresas Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP Billinton na construção de um acordo com a união e os estados de MG e ES para estabelecer medidas reparatórias para os desastres que as próprias empresas causaram. O referido acordo materializou-se na assinatura do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado pelas instâncias citadas em 2016, dando origem à Fundação Renova, que é mantida e gerida por tais empresas privadas responsáveis pelo desastre. Mais recentemente, outro acordo vem sendo construído em torno de outro desastre, aquele causado pelo rompimento da barragem da Vale S.A. em Brumadinho. Novamente, a participação da empresa responsável pelo evento vem sendo central nas negociações com o estado e as instituições de justiça, sem a participação dos atingidos. INSTITUTO GUAICUY. Em live, pessoas atingidas exigem protagonismo e cobram participação em negociações e acesso a termos de acordo proposto pelo Estado de MG à Vale. Disponível em:https://guaicuy.org.br/em-live-pessoas-atingidas-exigem-protagonismo-e-cobram-participacao-em-negociacoes-e-acesso-a-termos-de-acordo-proposto-pelo-estado-de-mg-a-vale. Acesso em: 13/11/2020.

 

Parte das reflexões deste texto foram originalmente publicadas em:


CAPANEMA, Carolina Marotta. "Prefácio". A natureza política das Minas: mineração, meio ambiente e sociedade no século XVIII. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2019.


 

Referências Bibliográficas:


BAETA, Alenice; PILÓ, Henrique (orgs.). Marcas Históricas Miguel Burnier - Ouro Preto. Belo Horizonte: Gerdau, 2012.


BARBOSA, Waldemar de Almeida. Dicionário histórico-geográfico de Minas Gerais. Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Ed. Itatiaia, 1995.


BRASIL DE FATO. Vale teve gastos milionários em propaganda já na primeira semana pós Brumadinho. 09/12/2019. Disponível em: https://www.brasildefatomg.com.br/2019/12/09/vale-teve-gastos-milionarios-em-propaganda-ja-na-primeira-semana-pos-brumadinho. Acesso em 16/11/2020.

CONGONHAS. Sistema Municipal de Meio Ambiente. Plano Municipal de Segurança de Barragens PMSB. Versão 1.5., 2019.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Produto Interno Bruto (PIB) de Minas Gerais. Disponível em: http://novosite.fjp.mg.gov.br/produto-interno-bruto-pib-de-minas-gerais/. Acesso em: 19 jul. 2019.

ROSCOE, Flávio. “Nova mineração”. Disponível em: <https://www7.fiemg.com.br/noticias/detalhe/nova-mineracao. Acesso em 17/11/2020.


TERMO DE TRANSAÇÃO E DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA. Disponível em: https://www.samarco.com/wp-content/uploads/2016/07/TTAC-FINAL.pdf. Acesso em 05/11/2020.

 

Como citar este texto:


CAPANEMA, Carolina M. Cinco anos do desastre socioambiental em Mariana. Viçosa. 2020. Disponível em: <https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/vocacao-mineral-ou-autodestruicao>. Acesso em: [Data de acesso].


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