No século XVIII a cidade de Mariana foi acometida por algumas inundações. Isso não é incomum em cidades situadas nas planícies onde as águas dos rios se espraiam nas cheias.
Mas, o que chama mais atenção na documentação da época é o fato de grande parte dos documentos produzidos sobre esses eventos terem atribuído sua ocorrência às práticas de mineração do ouro. Isso evidencia que aquela sociedade não ignorava as consequências de suas ações sobre o ambiente. Veja o trecho de um documento datado de 1747:
"Da serra, e morro chamado do Ouro Preto em várias fontes da parte do norte nascem as primeiras águas, que dão princípio ao rio chamado Ribeirão do Carmo […] nas margens do dito rio foi fundada a Vila do Carmo, hoje cidade de Mariana […], ignorando que esse se havia de encher de areia, e por cima de cinquenta palmos destas havia de correr, como hoje corre com grave prejuízo da dita Cidade […], o que procede de todos os dias se moverem as terras da dita Serra, e montes para se desentranhar o ouro delas, umas a força do braço, outras por indústria com as águas dos mesmos montes, que nos invernos levam tal quantidade de terra ao dito rio, que o fazem levantar a cada ano o melhor de quatro palmos, do que procede o dito prejuízo".
Na chamada época moderna (séculos XVI ao XVIII), as reflexões sobre os impactos da ação humana no “ambiente” não eram incomuns. Mas não representavam pensamentos centrados na conservação da natureza como nos moldes atuais e, sim, em sua maioria, eram focados na continuidade das atividades cotidianas e econômicas.
As inundações afetaram diretamente o espaço urbano de Mariana, como mostra a representação abaixo, datada de meados do século XVIII. Em 1745, a então vila de Nossa Senhora do Carmo foi elevada à “cidade” (a única a receber este título ao longo de todo aquele século em Minas!), recebendo o nome de Mariana. Assim, na década de 1740, seu território passou por ampla reforma para se adaptar aos padrões de uma cidade “civilizada” e merecedora daquele título.
Nesse contexto, as inundações se colocaram como obstáculos ao alcance daqueles objetivos e passaram a ser um grande problema a ser enfrentado, pois destruíam edificações, templos religiosos e vias públicas no centro urbano.
Nos dias atuais, as inundações dos centros urbanos continuam sendo um grande desafio para seus habitantes e para os poderes públicos.
E a grande ironia desta permanência histórica é: não são justamente certos padrões de urbanização, ordenação e civilização as causas da inundação de grandes cidades atualmente? Retificar cursos de rios que tem sua configuração original sinuosa, canalizá-los, criar arruamentos, eliminar a vegetação, impermeabilizar os solos, etc?
Belo Horizonte, por exemplo, em janeiro deste ano foi foco de enchentes que causaram grandes prejuízos e a destruição de diversos equipamentos públicos. E alguns discursos propagados na mídia por jornalistas e autoridades públicas atribuíram a culpa à “natureza”, sem considerar ou mencionar que, no passado, boa parte dos córregos da cidade foram canalizados, as matas ciliares foram eliminadas, as áreas verdes foram impermeabilizadas e as margens dos cursos d'água foram indevidamente ocupadas.
Se no passado as inundações causaram problemas para o processo de urbanização de Mariana, o presente parece indicar que as escolhas feitas na urbanização das cidades não têm sido a solução para a construção de um futuro diferente.
E então? Que futuro desejamos construir?
Parte das reflexões deste texto foram originalmente publicadas em:
CAPANEMA, Carolina Marotta. Inundações em Mariana: mineração, ambiente e representações de poder. In: A natureza política das Minas: mineração, meio ambiente e sociedade no século XVIII. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
Como citar este texto:
CAPANEMA, Carolina M. Inundações: entre o passado e o presente. Viçosa. 2020. Disponível em: https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/inundacoes-entre-o-passado-e-o-presente. Acesso em: [Data de acesso].
Referências Bibliográficas:
AHU-MG, cx. 51, doc. 45 [Requerimento de Manuel Cardoso Cruz e Manuel Teixeira Chaves, capitães de Ordenança da cidade de Mariana, solicitando a D. João V a mercê de ordenar se ajustasse com os ditos a melhor foram de se evitar as inundações da cidade, causadas pelas cheias do Ribeirão do Carmo, 25/12/1747].
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PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e crítica
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TEDESCHI, Denise Maria Ribeiro. Águas urbanas: as formas de apropriação das águas em Mariana (1745-1798). Dissertação (Mestrado em História). Universidade
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