Cada época e cada cultura elabora uma ideia de natureza e estabelece relações diferentes com o ambiente.
O conceito de natureza não apresenta uma perspectiva única e universal, nem no tempo e nem no espaço. Como disse o geógrafo Carlos Porto Gonçalves, “o conceito de natureza não é natural”.
A ideia de natureza não se restringe ao âmbito biofísico (clima, rochas, solos, águas, vegetação e animais). No dicionário de Raphael Bluteau, produzido no início do século XVIII, por exemplo, a natureza aparece com o significado de “essência” das coisas, tal como a ideia que a expressão “natureza humana” carrega. Ao mesmo tempo, “natureza” também representava “todas as entidades criadas”.
Mesmo que aquele dicionário apresentasse uma pluralidade de significados para o termo, havia uma tendência a identificar a natureza com a “realidade”, exprimindo aquilo que uma coisa é ou como ela é. Significado que ainda é atribuído ao termo nos dias atuais. Por exemplo, quando dizemos “ah! Isso é muito natural!” para definir alguma situação. Dessa forma, a palavra apresenta uma tendência a se identificar com a noção de origem e fundamento de verdades. Consequentemente, oferece a possibilidade de convencer que uma forma de pensar, de sentir ou de fazer algo está de acordo com a “natureza”.
E esta é apenas uma das perspectivas, há muitas maneiras de se pensar a natureza. Muitos a compreendem para além da dicotomia sociedade e ambiente, como geralmente o fazem os povos originários da América (lembrando que cada povo tem suas especificidades e não podemos pensar as culturas indígenas de uma forma genérica).
Mas, e qual o valor dessas discussões para a vida prática? Ou nos serve apenas como uma curiosidade sobre o passado? Acredito que uma das grandes vantagens de se conhecer um conceito, e sua história, é aprender a diagnosticar e avaliar criticamente tudo que vemos, ouvimos e lemos, pois nos ajuda a questionar a neutralidade de significados que muitas vezes categorizamos como “verdades”. Em situações polêmicas, uma das armas mais poderosas pode ser a linguagem.
Em Minas Gerais, no século XVIII, por exemplo, a identificação do termo “natureza” com “essência” das coisas foi utilizada no discurso que buscava justificar a execução de Felipe dos Santos, um dos participantes do levante que ocorreu em Vila Rica em 1720. Nele, Minas é descrita como “naturalmente” conflituosa. A natureza local é apresentada de maneira pejorativa e identificada como diretamente responsável pelo caráter dos moradores da região, como se vê no trecho a seguir: “habitada de gente intratável (…) a terra parece que evapora tumultos; a água exala motins (…) o clima é tumba da paz e berço da rebelião”.
Mas e nos dias de hoje? Quantas questões e até mesmo injustiças são justificadas pelo seu suposto caráter “natural”?
Este texto foi baseado em reflexões originalmente feitas em dois artigos:
CAPANEMA, Carolina Marotta. A ideia de natureza nos escritos setecentistas das Minas Gerais. In: DRUMMOND, José Augusto; FRANCO, José Luiz de Andrade; SILVA, Sandro Dutra e; BRAZ, Vivian da Silva (Org.). História ambiental: Natureza, sociedade, fronteiras. 1ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2020, p. 419-434.
CAPANEMA, Carolina Marotta. O conceito de natureza. A natureza política das Minas: mineração, meio ambiente e sociedade no século XVIII. 1. ed. Belo Horizonte: Letramento, 2019.
Referências utilizadas no texto:
BLUTEAU, Raphael. Natureza. In: Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... 8v. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712 – 1728. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/edicao/1.
CALAFATE, Pedro Calafate. A ideia de natureza no século XVIII em Portugal (1740-1800). Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1994.
GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do meio ambiente. 8ªed. São Paulo: Contexto, 2001.
SOUZA, Laura de Mello; FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Discurso histórico e político sobre a sublevação que nas Minas houve no ano de 1720. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1994.
WILLIAMS, Raymond Williams. Ideias de natureza. Cultura e materialismo. São Paulo: Editora Unesp, 2011.
Algumas referências complementares sobre o tema:
ABRANTES, Paulo. Imagens de Natureza, Imagens de Ciência. Campinas, SP: Papirus, 1998.
COLLINGWOOD, R.G. Ciência e filosofia: a ideia de natureza. 4. ed. Lisboa: Editorial Presença. (s.d)
DIEGUES, Antonio Carlos. O Mito Moderno da Natureza Intocada. 2.ed. São Paulo: Editora Hucitec, 1998.
FIUZA, Luciana; GUERRA, Andréia. A ideia de Natureza através da história: atividade com alunos. In: SILVA, Márcia Regina Barros da e HADDAD, Thomás A. S (orgs.). Anais do 13º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 2012. São Paulo: Sociedade Brasileira de História da Ciência, 2012. Disponível em: https://www.13snhct.sbhc.org.br/resources/anais/10/1345061002_ARQUIVO_FiuzaSBHC.pdf .
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LENOBLE, R. História da Ideia de Natureza. Lisboa. Ed.70, 1990.
MEDEIROS, Mara Glacenir Lemes de. Natureza e naturezas na construção humana: construindo saberes das relações naturais e sociais. Ciência & Educação, v.8, nº1, p.71 – 82, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/ciedu/v8n1/06.pdf.
Como citar este texto:
CAPANEMA, Carolina M. A falsa ideia universal de “natureza”. Em Tudo Vejo Natureza, Viçosa. 2020. Disponível em: <https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/a-falsa-ideia-universal-de-natureza>. Acesso em: [Data de acesso].
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