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Disseminando sementes: entre painas e ondas de rádio




Há duas formas de disseminar sementes por quilômetros e quilômetros de extensão: envolvendo-as em painas leves, como muito bem desenvolveu a natureza no processo evolutivo das paineiras ou espalhando-as pelas ondas de rádio.*


No inverno brasileiro, a paineira (Ceiba speciosa) libera suas sementes envoltas em flocos de fibra natural, que são popularmente conhecidas como painas. Estes flocos que lembram o algodão, quando caem no solo colorem jardins e gramados de branco por onde houver uma paineira, como podemos observar na foto abaixo.


Painas das paineiras espalhadas pelo solo. Universidade Federal de Viçosa. Foto: C. Capanema, set.2021..
Painas das paineiras espalhadas pelo solo. Universidade Federal de Viçosa. Foto: C. Capanema, set.2021..

Mas, na década de 1920, um cientista muito especial por quem nutro grandes afetos, considerava que as ondas de rádio também podiam disseminar sementes. Alberto José de Sampaio (1881-1946), botânico do Museu Nacional do Rio de Janeiro, acreditava que as palavras que difundia na Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, a primeira emissora fundada no Brasil (1923), podiam ser propagadoras do plantio de árvores. Daí nasceu uma de suas frases de efeito de que mais gosto: “de cada palavra uma semente fértil de nova árvore”.


Em “Paineiras em Flor”, primeira palestra proferida por Sampaio na Radio Sociedade, em fevereiro de 1925, ele brada pelas ondas radiofônicas (veja imagem do texto que deu origem à palestra logo abaixo):

“Cultivemos a paineira! Ela é rústica; vive sem grandes exigências, em terreno fértil ou pobre; suas sementes germinam facilmente; suas mudas vingam, ainda mesmo quando em abandono, sem regas e sem tratos, depois de plantadas”, argumentava. “Porque (...) até agora (...) temos sido devastadores e impenitentes de nossas árvores, imprevidentes na faina do lucro imediato”.

Trecho do texto "Paineiras em Flor", de Alberto José de Sampaio. Fonte: Museu Nacional, Seção Botânica. Reprodução: Carolina Capanema, 2005.
Trecho do texto "Paineiras em Flor", de Alberto José de Sampaio. Fonte: Museu Nacional, Seção Botânica. Reprodução: Carolina Capanema, 2005.

A Rádio Sociedade foi idealizada para fins educativos, científicos e culturais por intelectuais, professores, engenheiros, médicos e cientistas, influenciados por Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), seu principal idealizador. Apresentava ideais civilizadores, bem aos moldes da época, com o intuito de enquadrar o país no âmbito das nações "desenvolvidas" do norte global, que modelavam os ideais de “civilização” e “progresso”. Conceitos dados ainda hoje como universais, mas que escondem o constante desejo de domínio e enquadramento de povos historicamente subalternizados. E, para Sampaio, a construção de um país moderno, segundo aquelas premissas, passava pela proteção da natureza, conceito que transitava, para ele, entre o seu uso como recurso para o desenvolvimento econômico, bem como por sua preservação para fruição estética ou investigação científica.


Em suas palestras na Radio Sociedade, interessava a Sampaio incentivar o plantio e o cultivo de árvores em uma perspectiva pragmática, pois apontava com tom alarmante para o futuro das florestas brasileiras, que naquele momento encontravam-se ameaçadas pela constante demanda de madeira pelas indústrias siderúrgicas, entre outras atividades, como atestam também estudos mais recentes sobre o tema.


O botânico Alberto Sampaio em fotografia encontrada em seu acervo documental no Museu Nacional. Fonte: MN, Seção Botânica, DB 31. Reprodução: C. Capanema, 2005.
O botânico Alberto Sampaio em fotografia encontrada em seu acervo documental no Museu Nacional. Fonte: MN, Seção Botânica, DB 31. Reprodução: C. Capanema, 2005.

Se a reprodução de uma floresta por meio da dispersão natural de sementes é lenta, as palestras radiofônicas de Sampaio continham uma mensagem de esperança em um futuro vergel por meio do plantio planejado. As paineiras, ainda que tenham se especializado na dispersão de sementes, veem poucas delas transformadas em árvores. Afinal, dos muitos “milhões de sementes que caem em cada acre de superfície da Terra a cada ano, menos de cinco por cento vai começar a crescer. Destas, apenas cinco por cento vai sobreviver ao primeiro aniversário”, alerta-nos a bióloga Hope Jahren.


Portanto, juntemo-nos a Alberto Sampaio e espalhemos sementes. Plantemos árvores, não só com palavras, mas também com músicas, sementes e mudas, pois tudo está interligado.


Há quase cem anos (1925), Alberto Sampaio bradou pela Rádio Sociedade:

“passou o tempo de destruir! A geração atual compete reparar o erro das gerações passadas, destruidoras das árvores e das florestas. Pesada herança esta, mas a que não podemos fugir (...) Esse dever é, ao mesmo tempo, coletivo e individual; quem plantar, por exemplo uma paineira, como parcial resgate da nossa dívida atávica em face da flora brasílica, terá a recompensa, tão sutil quanto reconfortante, da certeza de “um bem” prestado ao país”.
Uma paineira em flor. Foto: Carolina Capanema, fev. 2021.
Uma paineira em flor. Foto: Carolina Capanema, fev. 2021.

Mas o que temos feito? Quais políticas públicas têm sido adotadas em nome de um pretenso desenvolvimento econômico que beneficia a poucos e tem causado a constante devastação de nossas florestas? Até quando admitiremos dividir o ônus pela exploração do nosso território por grandes corporações que dominam o mercado internacional (principalmente de minérios e agronegócio) e nos deixam apenas com os rastros de sua destruição?


 

* Obviamente, no segundo caso, trata-se de um sentido figurado, e existem variadas outras formas de se disseminar sementes (seja por meio antrópico ou natural, ainda que esta separação seja uma abstração cognitiva) . Peço aqui que me concedam uma licença poética.


 

A frase de efeito de Sampaio citada acima - "Em cada palavra uma semente fértil de nova árvore" - deu título ao um dos primeiros artigos acadêmicos publicados por um jovem historiadora cheia de esperanças: eu mesma. Ainda me orgulho dele. Caso queira acessar, basta clicar aqui.


 

Infelizmente, o incêndio de enormes proporções que atingiu o Museu Nacional do Rio de Janeiro em setembro de 2018, provavelmente destruiu parte ou todo o acervo do botânico Alberto José de Sampaio. Sampaio foi funcionário da instituição entre 1905 e 1941 e, ao longo de sua vida profissional, guardou muitos registros de sua trajetória e prática científica no Museu Nacional, formando um significativo arquivo pessoal, que se encontrava sob a guarda da instituição e constava de aproximadamente 31 caixas do fundo Seção Botânica. Esta estimativa foi baseada em informações disponibilizadas pelo inventário preliminar de documentos referentes a A. J. de Sampaio, em 2004. Felizmente, quando estive no Museu para realizar pesquisas para minha dissertação de mestrado, em 2005, tive a oportunidade de digitalizar boa parte da documentação pertencente ao acervo do cientista. Espero um dia conseguir levar a frente o projeto de elaborar um site sobre Sampaio e disponibilizar toda a documentação para acesso público.

 

Você pode encontrar documentos e textos sobre a Radio Sociedade aqui:


 

Referências bibliográficas:


CAPANEMA, Carolina Marotta. Em cada palavra uma semente fértil de nova árvore: Alberto Sampaio e a divulgação de práticas de proteção à natureza no Brasil. In: 10º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, 2005, Belo Horizonte. Anais [do] 10º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo: Sociedade Brasileira de História da Ciência, 2005.


CAPANEMA, Carolina Marotta. A natureza no projeto de construção de um Brasil Moderno e a obra de Alberto José de Sampaio. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006.


CARDIM, Ricardo. Árvores de São Paulo. As praças nevadas no inverno de São Paulo. Disponível em: https://arvoresdesaopaulo.wordpress.com/2012/08/20/as-pracas-nevadas-no-inverno-de-sao-paulo/. Acesso em: 16/09/21.


DUARTE, Adriana. Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Atlas Histórico do Brasil. Disponível em: https://atlas.fgv.br/verbetes/radio-sociedade-do-rio-de-janeiro. Acesso em: 17/09/21.


JAHREN, Hope. Lab girl: a jornada de uma cientista entre plantas e paixões; tradução Daniela Rigon. 1ª ed. Riod de Janeiro: HarperCollins, 2017.


LOPES, Gerson Luiz. Ceiba speciosa (A. St.-Hil.) Ravenna Paineira, árvore-de-paina. Disponível em: https://sites.unicentro.br/wp/manejoflorestal/8851-2/. Acesso em: 16/09/21.


MARTINS, Marcos Lobato. A política florestal, os negócios de lenha e o desmatamento: Minas Gerais, 1890-1950. HALAC. Belo Horizonte, volumen 1, numero 1, setiembre 2011 – febrero 2012, p. 29-54.


UHLIG, Alexandre; GOLDEMBERG, José; COELHO, Suani Teixeira. O uso de carvão vegetal na indústria siderúrgica brasileira e o impacto sobre as mudanças climáticas. Revista Brasileira de Energia, vol. 14, n. 2, 2º sem. 2008, p. 67-85.

 

Como citar este texto: CAPANEMA, Carolina M. Disseminando sementes: entre painas e ondas de rádio. Viçosa. 2021. Disponível em: https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/disseminando-sementes-entre-painas-e-ondas-de-radio. Acesso em: [Data de acesso].







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