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Como fazer história com o seu quintal

Atualizado: 6 de out. de 2020


Como fazer história com o seu quintal
Dente-de-leão (Taraxacum officinale). Foto: Carolina Capanema, 2020.


Descobri que uma das plantas que fotografei no meu quintal é considerada uma Planta Alimentícia Não Convencional (PANC). Como aqui o interesse são as relações entre sociedades e natureza, vale lembrar que o uso do termo PANC depende da perspectiva de quem observa.


O que é uma planta alimentícia não convencional para mim, pode não ser para pessoas que vivem em outra região do país. Por exemplo, a ora-pro-nobis, que é bastante conhecida e cultivada em algumas regiões de Minas Gerais – em Sabará há até o Festival do Ora-pro-Nóbis - pode ser considerada uma PANC para moradores do Nordeste. Plantas amazônicas podem ser não convencionais para um paulista, e convencionais para um morador de Belém ou Manaus. Basicamente, podemos pensar as PANC como plantas que não são amplamente cultivadas e comercializadas.


A espécie que encontrei no meu quintal é popularmente conhecida como dente-de-leão (Taraxacum officinale), tem propriedades medicinais e nutritivas, além de ser belíssima. Para quem quiser saber, como eu, se há alguma PANC no seu quintal ou na rua onde você mora, indico algumas cartilhas disponíveis gratuitamente para download, que ajudam a identificar algumas delas (veja as referências bibliográficas ao final do texto).


As PANC estão presentes também em espaços urbanos e podem ser encontradas até nas calçadas das cidades. Mas, como as calçadas e ruas são geralmente ambientes poluídos e contaminados, não é aconselhável coletar essas plantas para consumo nesses espaços. Além disso, é preciso ter cuidado para não confundir uma planta comestível com uma não-comestível. Portanto, não experimente se você tem alguma dúvida sobre a identificação de uma planta. Nesse caso, é necessário recorrer a um apoio técnico, a agricultores experientes e referências bibliográficas confiáveis.


Como fazer história com o seu quintal
Dente-de-leão. Foto: Carolina Capanema, 2020.

A dente-de-leão pertence à família Asteraceae, assim como a alface, a chicória, a arnica, a camomila e outras. Ela é uma planta originária da Europa e apresenta uma distribuição geográfica muito ampla, adaptando-se desde os limites da zona glacial até quase a linha do Equador. No Brasil, nas regiões sul e sudeste, desenvolve-se com mais intensidade durante o inverno, por estar melhor adaptada ao clima temperado. Isso explica ela estar radiante no meu quintal nesse período de quase inverno.


O fato de encontrar essa planta no meu quintal, pode nos levar a uma longa viagem histórica: a colonização das Américas e os efeitos da expansão da Europa sobre esses territórios. Expansão que se fez por meio da imposição de valores culturais, econômicos, políticos, sociais e biológicos. As espécies colonizadoras europeias foram avançando passo a passo com os invasores, causando o que Alfred Crosby chama de “expansão biológica” da Europa. O processo acarretou a expulsão ou eliminação da flora, fauna e de grupos de habitantes nativos de distintas regiões do mundo.

Nos dias atuais, um processo similar (semelhante, mas não idêntico, pois trata-se também de um processo de colonização) se faz presente no Brasil: a expansão das monoculturas, especialmente marcante em regiões do Cerrado e da Amazônia. Trata-se da imposição do cultivo de apenas algumas culturas vegetais sobre a imensa diversidade biológica brasileira. É nesse sentido que refletir sobre o passado é parte do presente, pois muitas práticas que se iniciaram há séculos ainda estão em desenvolvimento, mesmo que de maneiras diferentes. Podemos pensar sobre quem são hoje os empresários à frente dessa expansão monocultora. Que interesses defendem? Do mercado, do lucro, ou das populações brasileiras? Parece óbvio, mas para muitos pode não ser.


A imposição da economia de mercado aniquila a diversidade cultural e biológica brasileira e é uma política de estado, infelizmente. Valorizar as PANC, que estão relacionadas com aquilo que o ambiente local pode proporcionar (elas não são necessariamente nativas do Brasil), é uma forma de dar valor à biodiversidade, de se posicionar contra a massificação do consumo e do cultivo de poucas espécies vegetais. As PANC, como os dente-de-leão que tenho em meu quintal, são subutilizadas, mas podem garantir uma complementação alimentar saudável, disponível o ano todo e sem grande custo. Obviamente que isso não resolve os problemas vividos no Brasil, mas talvez seja útil para um início de reflexão sobre os processos que envolvem as relações da humanidade com o ambiente.


 

Referências utilizadas no texto:


CROSBY, Alfred W. Imperialismo ecológico: a expansão biológica da Europa, 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

INSTITUTO FEDERAL DE SANTA CATARINA; PROGRAMA DE SEGURANÇA ALIMENTAR DO ESTUDANTE (PSAE). Conhecendo as PANCs: Plantas alimentícias não convencionais. Santa Catarina: IFSC; PSAE, 2019. Disponível em: https://www.ifsc.edu.br/documents/30681/1733107/cartilha_PANCs_IFSC_2019.pdf/de1a6241-47f4-4cb8-8013-4628f0661533. Acesso em 18/06/2020.

INSTITUTO KAIRÓS (org.); RANIERI, Guilherme Reis (coord.). Guia prático sobre PANCs: plantas alimentícias não convencionais. São Paulo: Instituto Kairós, 2017. Disponível em: https://institutokairos.net/wp-content/uploads/2017/08/Cartilha-Guia-Pr%C3%A1tico-de-PANC-Plantas-Alimenticias-Nao-Convencionais.pdf. Acesso em 18/06/2020.

RIBEIRO, Marilena; ALBIERO, Adriana L.M.; MILANEZE-GUITIERRE, Maria Auxiliadora. Taraxacum officinale Weber (dente-de-leão) – uma revisão das propriedades e pontencialidades medicinais. Arq. Apadec, 8 (2): 46-49, 2004. Disponível em: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/ArqMudi/article/view/20552/10786. Acesso em 18/06/2020.


SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Colonização. In: Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto, 2009.


Bibliografia complementar:


Almeida, Mara Zélia de. Plantas medicinais. 3. ed. Salvador : EDUFBA, 2011.

GRANDI, Telma Sueli Mesquita. Tratado das plantas medicinais [recurso eletrônico]: mineiras, nativas e cultivadas. Belo Horizonte: Adaequatio Estúdio, 2014.


 

Como citar este texto:


CAPANEMA, Carolina M. Como fazer história com o seu quintal . Em Tudo Vejo Natureza, Viçosa. 2020. Disponível em: <https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/como-fazer-hist%C3%B3ria-com-o-seu-quintal>. Acesso em: [Data de acesso].


2 Comments


cmcapanema
cmcapanema
Jul 17, 2020

Que interessante, Adailton! Eu nem mesmo sabia que eles consumiam o dente-de-leão nesses países da Europa. A serralha também conheci há pouco e ainda não provei, mas como eu amo angu, vou tentar provar a sua "receita". Que bom que está gostando do site. Agradeço imensamente a companhia e fico muito contente com o seu retorno!

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Adailton Santos
Adailton Santos
Jul 08, 2020

O dente-de-leão é consumido, na França e na Espanha, no início da primavera, quando suas folhas ainda estão macias e com saber suave. Assim que, não estranhei ao descobrir a origem europeia do "diente de león". Fiquei perplexo, isso sim, ao descobrir em Crosby, que a seralha (Sonchus oleraceus) era uma "planta alienígena"... Que delícia que é uma seralha com angu!

Parabéns Carol, lindas as fotos e muito boa a discussão!

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