A vida é cheia de boas surpresas. Ontem uma amiga querida me apresentou a Ana Maria Primaviesi. Uma engenheira agrônoma que é considerada uma pioneira da agroecologia no Brasil, ainda que não tenha nascido em solo brasileiro. Primavesi, cuja beleza do nome já indica sua inclinação para as coisas da terra, faleceu recentemente, aos 99 anos, em janeiro de 2020.
Há um site belíssimo criado por sua biógrafa, a geógrafa Virgínia Mendonça Knabben, em que é possível ter uma ideia de sua importância para uma compreensão integrada das interações entre os seres humanos e não-humanos na Terra. O site é inteiramente dedicado à obra e ideias da agrônoma e foi ilustrado lindamente por Pamella Simioni. Os diversos textos e imagens disponibilizados nele configuram documentos (textos, artigos científicos, aulas, palestras, receitas de cura, fotos, vídeos, curiosidades, vídeos, divulgação de sua prática na mídia, etc.) que podem ser objeto de pesquisas históricas nas áreas de história ambiental, história das ciências, história intelectual, entre outras.
Primavesi dedicou sua vida profissional ao estudo do solo como um organismo vivo, em contraposição à ideia comum de que o solo é uma massa inerte que serve como simples suporte para a vegetação. Para ela, toda a vida na Terra depende dos solos, inclusive a humana. A agrônoma, entre suas inúmeras produções acadêmicas, participou da fundação do primeiro curso de pós-graduação em agronomia no Brasil, intitulado “Biodinâmica e Produtividade do Solo”, na Universidade Federal de Santa Maria/RS, onde começou a trabalhar em 1961.
Primavesi defendia o manejo ecológico do solo, apontando para uma agricultura que privilegia a atividade biológica própria dos solos, evitando o uso de insumos químicos que são comprovadamente danosos à saúde. Em um momento em que a produção monocultura em larga escala é valorizada no Brasil e a aprovação massiva de agrotóxicos no país supera toda a série histórica já registrada (dados referentes a 2019), as pesquisas da agrônoma se tornam ainda mais importantes como um contraponto ao discurso dominante. Os dados sobre o número de agrotóxicos aprovados pelo governo federal em 2019 foram tão alarmantes e amplamente divulgados na mídia, que em agosto daquele ano o governo elaborou uma nota de “esclarecimentos sobre o registro de defensivos agrícolas”.
Ao ler excertos da “Cartilha do Solo”, de autoria de Primavesi, me deparei com um trecho que compartilho a seguir para reflexão:
"Recebi um e-mail de uma Universidade da Índia em que um professor me pergunta: “Você acredita que a violência urbana tem suas origens na decadência do solo? Por favor me responda”. Que pergunta esquisita, pensei, estes indianos meditam demais e chegam depois a conclusões meio estranhas. Mas depois comecei também a pensar: solo decadente é doente, e solo doente somente pode criar plantas deficientes, ou seja doentes. E plantas doentes produzem produtos de um valor biológico muito baixo, por isso são atacados por tantas pragas e doenças precisando [de] muitos defensivos. Em uvas, nos cultivos ao longo do Rio São Francisco, são normais 120 pulverizações com defensivos e têm fazendas onde sobem até 140 pulverizações; diariamente uma, às vezes, duas. E plantas doentes somente fornecem alimentos incompletos e os homens que as consomem também são doentes, especialmente atacados dos nervos. E estas pessoas caem ou na depressão, como faz a maioria, ou no outro extremo que é a violência. Respondi com “sim””.
Que a primavera e suas flores nos inspire e sensibilize nosso olhar para as conexões entre as vidas que habitam a Terra, assim como o fez Primavesi.
Dedico estes ecritos à minha amiga Priscila Dorella que, na primavera deste conturbado ano de 2020, me apresentou Ana Maria Primavesi e seu modo sensível de pensar o mundo.
Referências:
BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Esclarecimentos sobre Registros de Defensivos Agrícolas. Disponível em: https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/esclarecimentos-sobre-registros-de-defensivos-agricolas. Acesso em: 25/09/2020.
GLOBO RURAL. Globo Rural conta a vida e a obra da agrônoma Ana Maria Primavesi. Disponível em: http://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2012/09/globo-rural-conta-vida-e-obra-da-agronoma-ana-maria-primavesi.html. Acesso em: 25/09/2020.
KNABBEN, Virgínia Mendonça. A extraordinária história de vida de Ana Maria Primavesi. Estudos Avançados, vol.33, no.96. São Paulo, maio/agosto, 2019.
PRIMAVESI, Ana Maria. Cartilha do Solo: como reconhecer e sanar seus problemas. São Paulo: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, setembro de 2009.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA. Nota de Falecimento de Ana Primavesi. Disponível em: https://www.ufsm.br/2020/01/05/nota-de-falecimento-de-ana-primavesi/. Acesso em: 25/09/2020.
Notícias sobre a aprovação de agrotóxicos no Brasil entre 2019 e 2020:
EL PAIS. Governo encurta prazo para aprovar agrotóxicos e provoca desconfiança até no setor agrícola. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-02-29/governo-encurta-prazo-para-aprovar-agrotoxicos-e-provoca-desconfianca-ate-no-setor-agricola.html. Publicado em: 29/03/2020. Acesso em: 25/09/2020.
FOLHA DE SÃO PAULO. Número de agrotóxicos liberados no Brasil em 2019 é o maior dos últimos 14 anos. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/12/numero-de-agrotoxicos-liberados-no-brasil-em-2019-e-o-maior-dos-ultimos-14-anos.shtml. Publicado em 28/12/2019. Acesso em: 25/09/2020.
G1. Número de agrotóxicos registrados em 2019 é o maior da série histórica; 94,5% são genéricos, diz governo. Disponível em:
https://g1.globo.com/economia/agronegocios/noticia/2019/12/28/numero-de-agrotoxicos-registrados-em-2019-e-o-maior-da-serie-historica-945percent-sao-genericos-diz-governo.ghtml. Publicado em 28/12/2019. Acesso em: 25/09/2020.
HYPNESS. Pandemia não impede aprovação de 118 novos agrotóxicos em 2 meses pelo Governo Federal. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2020/05/pandemia-nao-impede-aprovacao-de-118-novos-agrotoxicos-em-2-meses-pelo-governo-federal/. Sem data de publicação. Acesso em: 25/09/2020.
REPÓRTER BRASIL. 20% dos agrotóxicos liberados em 2019 são extremamente tóxicos. Disponível em:
https://reporterbrasil.org.br/2020/01/20-agrotoxicos-liberados-em-2019-sao-extremamente-toxicos/. Publicado em 16/01/2020. Acesso em: 25/09/2020.
UOL. Número de agrotóxicos liberados no Brasil é o maior dos últimos dez anos. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2019/11/28/com-novas-aprovacoes-liberacao-de-agrotoxicos-ja-e-o-maior-da-historia.htm. Publicado em 28/11/2019. Acesso em: 25/09/2020.
Como citar este texto:
CAPANEMA, Carolina M. À Primavesi, a primavera, Uma cientista para nos inspirar. Viçosa. 2020. Disponível em: <https://emtudovejonatureza.wixsite.com/inicio/post/a-primavesi-a-primavera-uma-cientista-para-nos-inspirar>. Acesso em: [Data de acesso].
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